Basta uma quantidade minúscula de fentanil, equivalente a alguns grãos de areia, para parar a respiração de uma pessoa. Este opióide sintético é insípido, inodoro e invisível quando misturado com outras substâncias, e os consumidores de drogas muitas vezes não têm consciência da sua presença.
É por isso que o empresário de biotecnologia Collin Gage pretende proteger as pessoas contra os efeitos letais da substância. Em 2023, tornou-se co-fundador e CEO da ARMR Sciences para desenvolver uma vacina contra o fentanil. Agora, a empresa vai lançar um ensaio para testar a vacina em pessoas pela primeira vez. O objectivo: prevenir mortes por overdose.
Cinquenta vezes mais potente que a heroína e 100 vezes mais potente do que a morfina, o fentanil foi aprovado pela Food and Drug Administration dos Estados Unidos em 1968 como analgésico intravenoso e anestésico. O potencial de abuso foi reconhecido logo nessa altura, e os clínicos só podiam obtê-lo em combinação com o sedativo droperidol, numa proporção de 50:1 (droperidol para fentanil).
Barato de produzir e incrivelmente viciante, o fentanil encontra-se agora em drogas de rua e comprimidos falsificados, porque aumenta a potência e reduz os custos. É actualmente o principal responsável pelas mortes por overdose nos Estados Unidos e a principal causa de morte entre norte-americanos dos 18 aos 45 anos.
No espaço europeu, as mortes por overdose de fentanil não são tão expressivas como nos EUA. Segundo dados da EU, em 2023, na Europa, as mortes por overdose de fentanil foram 160 numa população total de mais de 400 milhões de pessoas. Já especificamente em Portugal, em 2022 morreram 4 pessoas por overdose de fentanil.
Uma diferença significativa entre o caso europeu e o norte-americano é que enquanto na Europa, as overdoses são causadas principalmente por fentanil farmacêutico (pensos e comprimidos) que é desviado, já nos EUA a maioria das overdoses são causadas por “fentanil de rua” que circula sob a forma de comprimidos ou de pó.
A naloxona, conhecida pela marca Narcan, pode reverter rapidamente overdoses causadas por fentanil e outros opióides. A ampla distribuição do medicamento contribuiu para uma redução de 24% nas mortes por overdose nos EUA em 2024. Funciona ao ligar-se aos receptores opióides em todo o corpo e deslocar as moléculas de opióides que aí se encontram.
Mas uma vacina como a que a ARMR Sciences está a desenvolver seria administrada antes de uma pessoa sequer entrar em contacto com a droga. Gage compara-a a um colete à prova de balas ou a uma armadura — daí o nome da empresa. “Isto é algo que pode mudar completamente o paradigma de como lidamos com a overdose, porque não exige que alguém transporte o tratamento consigo”, afirma Gage.
As vacinas contra opióides foram propostas inicialmente nos anos 70 do século passado, mas após as primeiras tentativas falhadas com vacinas contra a heroína, grande parte da investigação foi abandonada. A epidemia moderna de opióides levou a um ressurgimento do interesse, com apoio do governo norte-americano.
A vacina experimental da ARMR foi concebida para neutralizar o fentanil na corrente sanguínea antes de chegar ao cérebro. Impedir que o fentanil atinja o cérebro evita a falência respiratória que acompanha a overdose — e que causa a morte —, bem como o efeito eufórico que as pessoas procuram ao consumir fentanil.
A ideia por trás da vacina da ARMR é a mesma de qualquer outra vacina: treina o sistema imunitário a produzir anticorpos que reconhecem um invasor externo. Mas como o fentanil é muito mais pequeno do que os agentes patogénicos que as vacinas actuais combatem, não desencadeia por si só uma resposta natural de anticorpos. Para estimular a produção de anticorpos, a ARMR combinou uma molécula semelhante ao fentanil com uma proteína “transportadora” — uma toxina da difteria desactivada, já utilizada em vários produtos médicos aprovados.
Se uma pessoa vacinada entrar em contacto com fentanil, os anticorpos no sangue ligar-se-ão à droga e impedirão que esta chegue ao cérebro. Normalmente, as moléculas de fentanil atravessam facilmente a barreira hematoencefálica devido ao seu pequeno tamanho. Mas moléculas de fentanil ligadas a anticorpos ficam demasiado grandes para passar a barreira. O resultado? Sem euforia e sem overdose. As moléculas de fentanil ligadas a anticorpos são eventualmente eliminadas pela urina.
A vacina baseia-se em trabalhos da Universidade de Houston, com colaboradores da Universidade de Tulane que desenvolveram um adjuvante derivado da bactéria E.coli para reforçar a resposta imunitária. Em ratos, a vacina bloqueou entre 92 e 98% do fentanil de entrar no cérebro e impediu os efeitos comportamentais da droga. Os efeitos duraram pelo menos 20 semanas nos ratos, o que Gage acredita poder traduzir-se em cerca de um ano de protecção em humanos.
O ensaio clínico de Fase 1/2 da ARMR, previsto para começar no início de 2026, irá recrutar cerca de 40 adultos saudáveis no Centre for Human Drug Research, nos Países Baixos. A primeira parte do ensaio avaliará a segurança da vacina e determinará a melhor dosagem. Os voluntários receberão duas injecções em doses variadas, e os investigadores irão medir os níveis de anticorpos no sangue. Na segunda parte do ensaio, um pequeno grupo de participantes receberá uma dose médica de fentanil para que os investigadores possam estudar a eficácia da vacina em bloquear os seus efeitos. Gage afirma que a ARMR escolheu o centro holandês devido à sua experiência em estudos com naloxona e nalmefeno, outro medicamento que reverte overdoses de opióides.